sábado, 10 de abril de 2021

Desaguar

 Que dia é hoje? Que horas são? 

Aqueles raios invadiam o lento abrir das minhas pálpebras. Era como ver a luz a primeira vez. Aquele clarão dançava com os vultos da minha consciência. Era como um temporal solar, uma fogueira atemporal que ardia meus olhos. Os flashes martelavam minha cabeça como aquele disco arranhado e sem nome.

Eu não sabia o que estava por vir. Você consegue distinguir entre o nascer e o pôr do sol? Como saber se  estou indo ou voltando? É difícil quando a gente se perde na história. Eu virei uma frase fora de contexto. Perdi meus pontos de referência. Apenas acordei naquele deserto continente. Seguia o barulho das ondas. Achei que estava chegando perto do mar, mas era só o eco dos meus passos se arrastando na areia. Como supor o futuro se não me lembro do passado? Como entender o presente se não conheço o passado? Eu me dei conta que estava correndo  em círculos naquela intersecção da minha existência. Mas eu parei e prontamente percebi que só me restava sentar e esperar a noite ou o dia se revelar. Porém, quanto mais eu esperava, mais a luz se mantinha estagnada na linha do horizonte como uma página emperrada. Eu não conseguia prosseguir aquela frase. O sol se engasgava com a leitura das palavras. Eu estava atormentada com os traumas escondidos do passado e com o medo do futuro. No fundo, eu buscava enxergar o que tinha medo de ver. 

O sol se apresentava pra mim como o ponteiro daquele relógio quebrado. Todas as tentativas de conserto foram frustradas, ele continuava estático como o sol.  Gastei dias tentando entender que dia e que horas eram. Demorou muito pra eu perceber que eu não precisava saber a data e a hora exata. Demorou muito pra eu aprender que não preciso esperar o dia ou a noite se revelarem. Demorou muito pra eu perceber que a paciência é o ponto de referência e que o presente é o contexto. Demorou muito pra eu aprender que o sol não nasce ou se põe pra quem espera, ele só se revela para quem sabe apreciar a transição sem impor expectativas. Ele só passeia livremente. É como a inspiração que acompanha a expiração. Não existe antes ou depois, primeiro ou segundo, a vida flui como os passos de uma dança. Enquanto um pé está indo o outro está voltando, mas o caminho é único, basta abandonar aqueles discos arranhados, escutar novas músicas e acompanhar o ritmo. 

Você acha que um rio se pergunta se está indo ou voltando? Um rio se pergunta se está no caminho certo? Não há represas capazes de contê-lo. Ele não duvida. Sua certeza corrói cada parte daquelas barreiras de concreto. Essa é a força da vida e você só entende para onde estava indo quando chega. O controle é uma ilusão e não importa o quão tortuoso seja aquele leito, uma hora ou outra você vai descobrir onde desaguou. 

Você encontrará sua foz e escutará os barulhos verdadeiros das ondas do mar. Seus passos vão virar maré e continuarão arrastando as areias, mas agora formando ondas verdadeiras, longe dos ecos estagnados da ilusão. 

Demorou, mas eu pude fluir e sentir o sal do suor e das lágrimas. Eu  troquei a pressa pela apreciação e abandonei aquele relógio. Me atrasei e cheguei a tempo de descobrir o nascer do sol e sentir o dia me atravessar. Não sei que dia é hoje nem que horas são, mas sei que o dia está começando.